¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, novembro 23, 2007
 
Crônicas da Guerra Fria (46)


O PÁLIDO ASPARGO DE PABLO



Curitiba - Ainda em atenção aos leitores que não gostam de ler sobre essa coisa inconveniente chamada História, falo hoje sobre livros. Contemporâneos, bem entendido. Pois livro antigo muitas vezes é refúgio de bolcheviques em plena andropausa, que assim se furtam aos debates atuais. Como dizia alguém, já não lembro quem, nada mais doloroso do que ler jornais nos dias atuais. Imagine comentá-los. Enfim, acabo de receber Minha Vida com Pablo Neruda, de Matilde Urrutia, viúva do maior embuste literário deste século que finda.

Pois haja fé para se considerar como poesia aquelas tripas espichadas de Eliecer Neftali Ricardo Reyes y Basoalto, que assim se chamava Neruda. Como ver um poema naquelas palavras soltas das Odes, muitas vezes uma ou duas por verso? Alinhadas horizontalmente, dariam uma ou duas frases, no máximo, de péssima prosa. John Gunther, em seu ensaio A Rússia por Dentro, há quatro décadas, já nos explicava a razão das linhas extremamente curtas dos versos dos poetas russos: é que os poetas recebiam uma taxa uniforme por linha, quatorze rublos. Stalinista e tão mais ávido por dinheiro que Jorge Amado, pensei, Neruda terá disposto seus "poemas" de modo a obter um lucro máximo por cada verso em defesa das massas espoliadas pelo vil regime capitalista que mais tarde lhe conferiu um Nobel, mas isto já é outro assunto.

Pensei, mas sequer ousei expressar o que pensava, não faltaria quem me chamasse de fascista e reacionário, inimigo dos mais belos sonhos da humanidade. Pois não é que, lendo uma recente coletânea de crônicas, tive minhas infames suspeitas confirmadas? Em A Ponte dos Suspiros, o insuspeito Moacir Werneck de Castro nos conta que os versos curtos das Odes nada tinham a ver com normas poéticas e sim motivações menos prosaicas: "é que o jornal El Nacional, de Caracas, pertencente ao escritor Miguel Otero e Silva, grande amigo de Neruda, colaborador assíduo, pagava as poesias por linha". Eu sabia que nesse mato tinha coelho. Para muito jovem ingênuo, a malandragem do Avida Dolars chileno passou por escola poética.

Avida Dolars, deve estar o leitor lembrado, foi o anagrama pespegado a Salvador Dali. Não tanto por seu amor aos dólares. Mas porque permaneceu na Espanha salva por Franco da peste que hoje Gorbachov tenta conjurar. Tomasse o partido dos vermelhos (republicanos foi eufemismo que só surgiu tardiamente), Dali poderia adorar dólares à vontade. Como aliás fez Picasso, sem que ninguém condenasse tão humano desejo no pintor de Guernica. Este mural, a propósito, foi um braguetaço dos mais bem-sucedidos. Picasso havia pintado uma tela de oito metros de largura por três e meio de altura, intitulada La Muerte del Torero Joselito, plena de cores fúnebres, que iam do preto ao branco, em homenagem a um amigo seu, o toureiro Joselito, morto em uma lídia. O quadro ficara esquecido em algum canto de seu ateliê. Ao receber uma encomenda para o pavilhão republicano da Exposição Universal de Paris de 1937, Picasso lembrou do quadro. Foi quando, para fortuna do malaguenho, a cidade de Guernica foi bombardeada pela aviação alemã. Ali estava o título e a glória, urbi et orbi. Uns retoques daqui e dali, e Picasso deu nova função ao quadro. No entanto, multidões hipnotizadas pela propaganda comunista, vêem em uma cena de arena, com cavalo, touro e picador, uma homenagem aos mortos de Guernica. De um só golpe de pincel, o vigarista malaguenho traiu a memória do amigo e mentiu para a História.

Picasso bem poderia ter batizado sua obra de Paracuellos del Jarama. Mas aí seria expulso do mundo dos vivos, como o foram todos os que ousaram denunciar os crimes dos republicanos. Pois em 1936, em Paracuellos del Jarama, sítio que ninguém gosta de lembrar, foram fuzilados pelo Partido Comunista nada menos que dois mil e quatrocentos espanhóis que se opunham à Frente Popular. À frente do PC espanhol estava Santiago Carrillo. Mas falava de outro Pablo, o Neruda. Terá sido esta avidez de dólares, disputados verso a verso, que o fez escrever esta pérola:


Stalin construía,
de suas mãos nasceram
os cereais
os tratores
os ensinamentos
as estradas...


Etc. Ad nauseam. Fico por aqui, que a tripa é longa e não tem graça. Pelo menos para nós. Pois de rublo em rublo, Pablo encheu o papo de dólares. Em 71, tais hagiológios lhe renderam nada menos que um prêmio Nobel. Em Pablo y Don Pablo, Jurema Finamour, sua secretária, nos conta a "surpresa" do poeta ao saber da premiação. Pois Neruda, que todos os anos viajava a Moscou na condição de jurado do prêmio Stalin, durante toda sua vida mobilizou energias e os serviços diplomáticos do Chile para alcançar a láurea máxima literária da sociedade capitalista que tanto abominava. Sua surpresa foi tamanha que o banquete comemorativo do prêmio já estava organizado.

Mas comecei falando das memórias de Matilde Urrutia, uma das muitas esposas de Neruda. O livro data de 1986, quando já não mais se podia dizer que Salvador Allende fora assassinado em La Moneda, como o faz a autora nas primeiras páginas. Em Os Dois Últimos Anos de Salvador Allende, publicado originalmente em 1985, Nathaniel Davis demoliu definitivamente este mito. Não faltarão objeções ao autor, afinal era o embaixador americano no Chile na época do golpe. O fato é que Hortencia Allende, no dia 15 de setembro de 1973, confirmou a um jornal mexicano o suicídio de seu marido. Quatro dias depois, falou em assassinato. Hoje, em recentes declarações, distante dos fatos e de quaisquer pressões, a viúva Allende reconhece que de fato ocorreu um suicídio. O livro de Urrutia fica assim prejudicado, desde as primeiras linhas, por uma afirmação que hoje sabemos ser falsa. Quanto ao mais, é uma fútil crônica social de peregrinações por Berlim, Praga, Paris, Capri, Nice, Veneza, itinerário no mínimo insólito na vida de um líder proletário.

Em Praga, no ano passado, quando fui respirar os ares de liberdade que hoje inundam a cidade de Kafka, aprendi algo mais sobre Neruda. Sempre me intrigara onde Eliecer Neftali, de sefardita ressonância, fora buscar seu pseudônimo. Ao dirigir-me ao castelo que hoje abriga Vaclav Havel, subi pela rua Nerudova, desagradável evocação em cidade tão linda. Relendo agora Confesso que Vivi, as memórias de "pájaro Pablo", como ele adorava autodenominar-se, constato que meu mal-estar tinha sua razão de ser: Eliecer buscou seu nome de guerra em Jan Neruda, poeta tcheco do século passado. O que não deixa de constituir uma ironia atroz: por uma dessas razões da qual homem algum está livre, o poeta que amou e cantou Praga acabou emprestando seu nome ao poetastro que deu aval, com seu stalinismo, aos tanques que tentaram escravizá-la.

Mas a História é mulher loureira, dizia Machado. Visto de nossos dias, o monumento se revela de barro. Rindo por dentro deve estar Leo Gilson Ribeiro, um dos raros ensaístas corajosos a militar na crítica brasileira. Em O Continente Submerso, livro que recomendo a todo leitor que queira dar um passeio pelas letras latino-americanas, Leo Gilson, comemorando o livro de Finamour, o define como "um processo póstumo às mentiras que criaram o culto dessa personalidade que ela revela, traço por traço, ser mesquinha, narcisista, medíocre, covarde, egoísta, avarenta, calculista, superficial". Por esta - e por outras - tanto Leo Gilson como Jurema Finamour tiveram suas mortes civis decretadas nas letras tupiniquins. Pois da manutenção de certos mitos dependem muitas carreiras jornalísticas e universitárias.

Outro escritor expulso do mundo dos vivos foi Ricardo Paseyro, ao publicar em Paris Le Mythe Neruda, pequeno e contundente ensaio sobre o óbvio: "seus livros são um monumento à infâmia. Neruda, como certos pássaros, faz seu ninho de bosta, se compraz na imundície da frase, na vulgaridade da sensação primária e nela refocila com volúpia". O mito nada tem de misterioso. Para Alberto Baeza Flores, "à força de repetir durante trinta anos que Neruda era genial, o Partido Comunista conseguiu que todo mundo acreditasse nesse refrão".

Por falar em livros, acaba de ser lançado em Paris, pela Payot, Martin Heidegger, de Hugo Ott. Para os discípulos do pensador nazista, que ficaram escandalizados com as denúncias do professor chileno Otávio Farias, há muito ainda o que ver e ouvir. Pois Ott demonstra ainda mais abundantemente as ligações de Heidegger com o regime hitlerista. Nos meios universitários, exceção feita dos doutores que fizeram suas carreiras papagueando o filósofo nazista, todos dele se afastam como se leproso estivesse. "Que horror, era nazista!" Quando nutrirão, nossos universitários, este mesmo horror sagrado em relação aos pensadores, poetas e professores comunistas? Se as bandeiras eram diferentes, a barbárie foi a mesma.

Enquanto isto, melhor lermos Leo Gilson, para quem na história das artes e do pensamento sempre houve inúmeros casos de monstros que foram artistas admiráveis: "Céline, assassino; Genet, ladrão; Baudelaire, toxicômano; Rimbaud, mercador de negros; Knut Hamsun, Walter Gieseking e Elisabeth Schwartzkopf abraçando o nazismo; Ezra Pound transmitindo mensagens radiofônicas em prol do fascismo; Brecht jamais denunciando os crimes do stalinismo - mas há uma cisão nítida entre a arte que sobrevive por sua vida intrínseca e temporal e o ser humano cego, calculista, viciado, débil, oportunista. Esta cisão, infelizmente, nunca existiu entre a obra e o homem Pablo Neruda".

O cronista deve possuir uma nerudiana fabulosa, deve estar imaginado o leitor. Nada disso, sou apenas um leitor vadio, adoro pular de livro em livro. Tenho até uma ode ao poeta, Elegi för Pablo Neruda, de autoria de Artur Lundkvist, nada menos que o falecido presidente da Real Academia Sueca, aquela que atribui os prêmios Nobel de Literatura. Parceiro de Neruda nos Congressos pela Paz financiados por Moscou (aqueles mesmos dos quais participava Antônio Pinheiro Machado Netto, o defensor do Muro de Berlim, gaúcho de triste memória), Lundkvist era caitituado pelo apparatchik chileno, que o recebia em suas embaixadas e mansões diplomáticas, o que nos mostra que os caminhos que levam ao Nobel não dependem propriamente do talento.

Enfim, panfletos à parte, o que sempre me espantou em Neruda foi sua urolagnia. Quem não lembra de "poemas" como El Gran Orinador, plágio descarado de Swift? Ou ainda esta coisa, onde o poeta canta a amada ao ouvi-la

urinar na escuridão,
no fundo da casa,
como se vertesse
um mel trêmulo,
argentino,
obstinado,
quantas vezes entregaria
este coro de sombras
que possuo.


Bueno, em sua elegia a Neruda, Lundkvist canta o sexo do futuro Nobel, "en blek sparris som blott gav vatten". Traduzindo: "um pálido aspargo que apenas jorrava água". Estranha ode à anatomia do vate. Como também são estranhos os sendeiros que conduzem ao Nobel. Outro dia volto a falar de livros.


(Porto Alegre, RS, 19.01.91)